Quando o veneno vira remédio
Um experimento brasileiro coloca a toxina da abelha como uma promessa de tratamento contra artrites. É a ciência desvendando, aos poucos, o potencial terapêutico das temidas picadas
por ADRIANA TOLEDO, DIOGO SPONCHIATO e THEO RUPRECHT | design PILKER
Dizem que a diferença entre o veneno e o remédio está na dose. Não por menos, a crença popular apregoa que as ferroadas das abelhas atenuam certos problemas de saúde, como as dores nas juntas. “Há relatos de indivíduos com artrite que sentem uma melhora após serem atacados pelo inseto”, conta o imunologista Fábio Morato Castro, professor da Universidade de São Paulo (USP). Esse efeito colateral descrito por algumas vítimas de enxames motivou um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP a investigar a autenticidade da história. “Criamos um modelo em laboratório para apurar se havia alguma verdade nisso”, conta Castro, um dos autores do trabalho. E não é que a ciência teve que dar o braço a torcer?!
Os estudiosos mensuraram o potencial terapêutico do veneno em coelhos. Só que, para efeito de estudo, tiveram que inverter a ordem natural das coisas. Primeiro, eles administraram a toxina às cobaias por meio de uma bolsinha instalada no dorso dos animais. O veneno promove uma inflamação no local, o que estimula o corpo a liberar glicocorticoides, hormônios responsáveis por um efeito anti-inflamatório — é uma reação de defesa para o organismo manter o equilíbrio. Mais tarde, os cientistas induziram o aparecimento da artrite nos coelhos. Só que os glicocorticoides, já imersos na corrente sanguínea, se apressaram a aplacar a inflamação na articulação. “Esses hormônios irão atuar na artrite onde ela estiver”, afirma a farmacologista Suzana Veríssimo de Mello, coautora da pesquisa.
Repare que não é preciso aplicar a toxina no local de sofrimento das juntas — em um joelho, por exemplo. “O veneno não requer essa operação porque o glicocorticoide é produzido pelo próprio corpo. Então, pode ser aplicado em outro lugar”, justifica Suzana (veja o esquema ao lado). Em meio aos testes, a equipe chegou à dose ideal: 1,5 micrograma por quilo. Coincidência ou não, esse valor equivale a uma picada de abelha. Administrada a quantidade correta, os resultados não demoraram a aparecer. “Observamos uma redução nos níveis de uma substância que indica a presença da dor e do processo inflamatório na articulação”, conta Suzana. “É como se uma infl amação, causada pela toxina, tratasse outra infl amação”, avalia Castro.
No entanto, quem tem artrite não deve correr atrás de uma colmeia para buscar alívio. Os autores do trabalho enfatizam, em coro, que ainda é impossível estender os resultados aos seres humanos. Embora existam pesquisas desse tipo em outros países, no Brasil só estudos clínicos poderão legitimar o uso. Outra questão é que o veneno talvez não seja uma panaceia no mundo das artrites — e olha que existem 118 tipos da doença! “Ao que tudo indica, a toxina teria um melhor resultado para tratar aquelas artrites de fundo alérgico, que são mais raras”, pondera o reumatologista Flávio Maciel, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
A abelha não parece dar a solução para problemas mais comuns e graves, como a artrite reumatoide — versão marcada pela agressão do sistema imune às juntas. “Isso porque o efeito anti-infl amatório do veneno estaria aquém da necessidade dos pacientes”, diz Maciel. Apesar das respostas que apenas o tempo poderá conceder, a toxina só tem a somar no arsenal terapêutico para os males das articulações. E de pensar que as únicas virtudes das abelhas para a saúde se restringiam ao própolis e ao mel...
Os estudiosos mensuraram o potencial terapêutico do veneno em coelhos. Só que, para efeito de estudo, tiveram que inverter a ordem natural das coisas. Primeiro, eles administraram a toxina às cobaias por meio de uma bolsinha instalada no dorso dos animais. O veneno promove uma inflamação no local, o que estimula o corpo a liberar glicocorticoides, hormônios responsáveis por um efeito anti-inflamatório — é uma reação de defesa para o organismo manter o equilíbrio. Mais tarde, os cientistas induziram o aparecimento da artrite nos coelhos. Só que os glicocorticoides, já imersos na corrente sanguínea, se apressaram a aplacar a inflamação na articulação. “Esses hormônios irão atuar na artrite onde ela estiver”, afirma a farmacologista Suzana Veríssimo de Mello, coautora da pesquisa.
Repare que não é preciso aplicar a toxina no local de sofrimento das juntas — em um joelho, por exemplo. “O veneno não requer essa operação porque o glicocorticoide é produzido pelo próprio corpo. Então, pode ser aplicado em outro lugar”, justifica Suzana (veja o esquema ao lado). Em meio aos testes, a equipe chegou à dose ideal: 1,5 micrograma por quilo. Coincidência ou não, esse valor equivale a uma picada de abelha. Administrada a quantidade correta, os resultados não demoraram a aparecer. “Observamos uma redução nos níveis de uma substância que indica a presença da dor e do processo inflamatório na articulação”, conta Suzana. “É como se uma infl amação, causada pela toxina, tratasse outra infl amação”, avalia Castro.
No entanto, quem tem artrite não deve correr atrás de uma colmeia para buscar alívio. Os autores do trabalho enfatizam, em coro, que ainda é impossível estender os resultados aos seres humanos. Embora existam pesquisas desse tipo em outros países, no Brasil só estudos clínicos poderão legitimar o uso. Outra questão é que o veneno talvez não seja uma panaceia no mundo das artrites — e olha que existem 118 tipos da doença! “Ao que tudo indica, a toxina teria um melhor resultado para tratar aquelas artrites de fundo alérgico, que são mais raras”, pondera o reumatologista Flávio Maciel, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
A abelha não parece dar a solução para problemas mais comuns e graves, como a artrite reumatoide — versão marcada pela agressão do sistema imune às juntas. “Isso porque o efeito anti-infl amatório do veneno estaria aquém da necessidade dos pacientes”, diz Maciel. Apesar das respostas que apenas o tempo poderá conceder, a toxina só tem a somar no arsenal terapêutico para os males das articulações. E de pensar que as únicas virtudes das abelhas para a saúde se restringiam ao própolis e ao mel...
Entenda como ele é obtido e de que forma ajuda a aplacar a artrite
1. A COLETA
Um aparelho é posicionado em frente à colmeia. Quando uma abelha gruda nele, toma um choque. Por instinto, ela dá uma ferroada, lançando seu veneno. Isso atrai suas companheiras, que têm a mesma reação. Em contato com o ar, a toxina vira pó.
2. A PURIFICAÇÃO
O veneno em pó é levado a um laboratório e colocado em uma máquina capaz de separar as proteínas das demais substâncias. São justamente as proteínas que agridem o corpo atacado pelo inseto.
3. A APLICAÇÃO
Pronta, essa fração do veneno é administrada ao coelho. Ali, ela gera uma inflamação local que instiga a glândula suprarrenal do bicho a fabricar glicocorticoides, hormônios de ação anti-inflamatória.
4. A REPERCUSSÃO
Essas substâncias caem na corrente sanguínea e se dirigem às juntas com artrite, ou seja, reféns de um processo inflamatório. Os glicocorticoides, por sua vez, são capazes de abrandar o problema, reduzindo a dor e o inchaço.ATÉ PARA AS RUGAS?!
Um creme feito com o veneno de abelha e comercializado na Europa está causando alvoroço por supostamente apagar as marcas do tempo na pele. Seus poderes seriam capazes de substituir a toxina botulínica — substância aplicada por meio de uma injeção nos músculos para impedir que eles se contraiam. Mas a Sociedade Brasileira de Dermatologia adverte: não há trabalhos científicos que comprovem a eficiência desse cosmético. “Até porque nenhum creme consegue chegar à musculatura facial”, esclarece Andréia Mateus Moreira, coordenadora do Departamento de Cosmiatria da entidade. “Isso sem contar que o veneno pode causar reações alérgicas”, alerta.ANTÍDOTO CONTRA O VENENO
O soro antiabelha criado no Brasil promete anular os efeitos, muitas vezes letais, dos ataques de enxames
Quem dá o azar de topar com uma colmeia pode ser obrigado a encarar, em franca desvantagem, centenas de abelhas munidas de ferrões. “Quando uma pessoa é picada por cerca de 200 insetos, toxinas presentes no veneno afetam os rins, o fígado e o coração, podendo levar à morte por falência múltipla de órgãos”, explica a bióloga Keity Souza, da Universidade de São Paulo, que desde 2008 se empenha no desenvolvimento de um soro capaz de neutralizar esse efeito devastador. “Extraímos o veneno de abelhas africanizadas, as mais comuns no Brasil, e o injetamos em cavalos”, conta a especialista. “Esses animais passam a produzir, então, anticorpos e, quando eles chegam a níveis adequados, colhemos o sangue do bicho e utilizamos o plasma, onde se concentram essas substâncias”, descreve. Até o momento, em experimentos com ratos, o soro se mostrou efi caz. “Agora estamos desenvolvendo um terceiro lote do medicamento para que possamos iniciar os testes em seres humanos.”
AO TOMAR UMA FERROADA
A picada de uma única abelha não devasta órgãos vitais, mas, em algumas pessoas, causa reações alérgicas cujos sintomas vão de uma simples dor ou coceira até o inchaço da glote — aquela abertura localizada na laringe. Isso dificulta a respiração e, em casos extremos, é capaz de matar. “Diante de um mal-estar após o ataque, o ideal é correr para um hospital, onde os médicos podem remover o ferrão e administrar um remédio adequado”, diz Keity Souza. “E quem já sabe que tem alergia à picada precisa carregar sempre um antialérgico e um documento informando sobre sua predisposição.”
A picada de uma única abelha não devasta órgãos vitais, mas, em algumas pessoas, causa reações alérgicas cujos sintomas vão de uma simples dor ou coceira até o inchaço da glote — aquela abertura localizada na laringe. Isso dificulta a respiração e, em casos extremos, é capaz de matar. “Diante de um mal-estar após o ataque, o ideal é correr para um hospital, onde os médicos podem remover o ferrão e administrar um remédio adequado”, diz Keity Souza. “E quem já sabe que tem alergia à picada precisa carregar sempre um antialérgico e um documento informando sobre sua predisposição.”
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