sábado, 8 de outubro de 2011

Petróleo e gás natural podem não ser fósseis

Petróleo e gás natural podem não ser fósseis



O Universo originou-se de uma descomunal explosão, conhecida como Big Bang. O petróleo e o gás natural são combustíveis fósseis. Estas são provavelmente as duas teorias científicas mais disseminadas, de maior conhecimento do público e algumas das que alcançaram maior sucesso em toda a história da ciência.
Elas são tão populares que é fácil esquecer que são exatamente isto – teorias científicas, e não descrições de fatos testemunhados pela história. Mesmo porque as duas oferecem explicações para eventos que se sucederam muito antes do surgimento do homem na Terra.
Teoria dos combustíveis fósseis
Segundo a teoria dos combustíveis fósseis, que é a mais aceita atualmente sobre a origem do petróleo e do gás natural, organismos vivos morreram, foram enterrados, comprimidos e aquecidos sob pesadas camadas de sedimentos na crosta terrestre, onde sofreram transformações químicas até originar o petróleo e o gás natural.
É com base nesta teoria que chamamos as principais fontes de energia do mundo moderno de “combustíveis fósseis” – porque seriam resultado de restos modificados de seres vivos.
Teoria do petróleo abiótico
Muito menos disseminado é o fato de que esta não é a única teoria para explicar o surgimento do petróleo. Na verdade, esta teoria hegemônica vem sendo cada vez mais questionada por um grande número de cientistas, que defendem que o petróleo tem uma origem abiótica, ou abiogênica – sem relação com formas de vida.
Os defensores da teoria abiótica do petróleo têm inúmeros argumentos. Por exemplo, a inexistência de fenômenos geológicos que possam explicar o soterramento de grandes massas vivas, como florestas, que deveriam ser cobertas antes que tivessem tempo de se decompor totalmente ao ar livre, juntamente com a inconsistência das hipóteses de uma deposição do carbono livre na atmosfera no período jovem da Terra, quando suas temperaturas seriam muito altas.
A deposição lenta, como registrada por todos os fósseis, não parece se aplicar, uma vez que as camadas geológicas apresentam variações muito claras, o que permite sua datação com bastante precisão. Já os depósitos petrolíferos praticamente não apresentam alterações químicas variáveis com a profundidade, tendo virtualmente a mesma assinatura biológica em toda a sua extensão.
Além disso, os organismos vivos têm mais de 90% de água e mesmo que a totalidade de sua massa sólida fosse convertida em petróleo não haveria como explicar a quantidade de petróleo que já foi extraída até hoje.
Outros fenômenos geológicos, para explicar uma eventual deposição quase “instantânea,” deveriam ocorrer de forma disseminada – para explicar a grande distribuição das reservas petrolíferas ao longo do planeta – e em grande intensidade – suficiente para explicar os gigantescos volumes de petróleo já localizados e extraídos.
Carbono do interior da Terra
Por essas e por outras razões, vários pesquisadores afirmam que nem petróleo, nem gás natural e nem mesmo o carvão, são combustíveis fósseis. Para isso, afirmam eles, o ciclo do carbono na Terra deveria ser um ciclo fechado, restrito à crosta superficial do planeta, sem nenhuma troca com o interior da Terra. E não há razões para se acreditar em tal hipótese.
Na verdade, aí está, segundo a teoria dos combustíveis abióticos, a origem do petróleo, do gás natural e do carvão: eles se originam do carbono que é “bombeado” continuamente pelas altíssimas pressões do interior da Terra em direção à superfície.
É possível sintetizar hidrocarbonetos a partir de matéria orgânica, e estes experimentos foram, por muitos anos, o principal sustentáculo da teoria dos combustíveis fósseis.
Mas agora, pela primeira vez, um grupo de cientistas conseguiu demonstrar experimentalmente a síntese do etano e de outros hidrocarbonetos pesados em condições não-biológicas. O experimento reproduz as condições de pressão e temperatura existentes no manto superior, a camada da Terra abaixo da crosta.
Metano e etano abióticos
A pesquisa foi feita por cientistas do Laboratório de Geofísica da Instituição Carnegie, nos Estados Unidos, em conjunto com colegas da Suécia e da Rússia, onde a teoria do petróleo abiótico surgiu e tem muito mais aceitação acadêmica do que em outras partes do mundo.
O metano (CH4) é o principal constituinte do gás natural, enquanto o etano (C2H6) é usado como matéria-prima petroquímica. Esses dois hidrocarbonetos, juntamente com outros associados aos combustíveis de origem geológica, são chamados de hidrocarbonetos saturados porque eles têm ligações únicas e simples, saturadas com hidrogênio.
Utilizando uma célula de pressão, conhecida como bigorna de diamante, e uma fonte de calor a laser, os cientistas começaram o experimento submetendo o metano a pressões mais de 20 mil vezes maiores do que a pressão atmosférica ao nível do mar, e a temperaturas variando de 700° C a mais de 1.200° C. Estas condições de temperatura e pressão reproduzem as condições ambientais encontradas no manto superior da Terra, entre 65 e 150 quilômetros de profundidade.
No interior da célula de pressão, o metano reagiu e formou etano, propano, butano, hidrogênio molecular e grafite. Os cientistas então submeteram o etano às mesmas condições e o resultado foi a formação de metano. Ou seja, as reações são reversíveis.
Essas reações fornecem evidências de que os hidrocarbonetos pesados podem existir nas camadas mais profundas da Terra, muito abaixo dos limites onde seria razoável supor a existência de matéria orgânica soterrada.
Reações reversíveis
Outro resultado importante da pesquisa é que a reversibilidade das reações implica que a síntese de hidrocarbonetos saturados é termodinamicamente controlada e não exige a presença de matéria orgânica.
“Nós ficamos intrigados por experiências anteriores e previsões teóricas,” afirma Alexander Goncharov, um dos autores da pesquisa. “Experimentos feitos há alguns anos submeteram o metano a altas pressões e temperaturas, demonstrando que hidrocarbonetos mais pesados se formam a partir do metano sob condições de temperatura e pressão muito similares. Entretanto, as moléculas não puderam ser identificadas e era provável que houvesse uma distribuição.”
“Nós superamos esse problema com nossa técnica aprimorada de aquecimento a laser, que nos permitiu aquecer um volume maior de maneira mais uniforme. Com isso, descobrimos que o metano pode ser produzido a partir do etano”, declarou Goncharov.
Hidrocarbonetos gerados no interior da Terra
“A ideia de que os hidrocarbonetos gerados no manto migram para a crosta terrestre e contribuem para a formação dos reservatórios de óleo e gás foi levantada na Rússia e na Ucrânia muito anos atrás. A síntese e a estabilidade dos compostos estudados aqui, assim como a presença dos hidrocarbonetos pesados ao longo de todas as condições no interior do manto da Terra agora precisarão ser exploradas,” explica outro autor da pesquisa, professor Anton Kolesnikov.
“Além disso, a extensão na qual esse carbono ‘reduzido’ sobrevive à migração até a crosta, sem se oxidar em CO2, precisa ser descoberta. Essas e outras questões relacionadas demonstram a necessidade de um programa de novos estudos teóricos e experimentais para estudar o destino do carbono nas profundezas da Terra,” conclui o pesquisador.

Bibliografia:
Methane-derived hydrocarbons produced under upper-mantle conditions
Anton Kolesnikov, Vladimir G. Kutcherov, Alexander F. Goncharov
Nature Geoscience
26 July 2009
Vol.: Published online
DOI: 10.1038/ngeo591
Agostinho Rosa

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cientistas desenvolvem técnica que pode criar células-tronco personalizadas


Descoberta abre caminho para a produção de células usando material genético do próprio doente
Uma equipe de cientistas de Nova York afirmou nesta quarta-feira que estão mais perto de conseguirem criar a chamada célula-tronco personalizada.
A técnica envolve pegar um óvulo humano e combiná-lo com uma célula de outra pessoa.
Segundo os pesquisadores, os resultados podem ser usados para tratar várias doenças, já que seria possível produzir, de maneira personalizada para cada paciente,células saudáveis para substituir as doentes.
Em um artigo para a revista científica Nature, a equipe Fundação de Células-Tronca do Nova York disse ter usado uma tecnologia de clone (chamada transferência de núcleos de célula somática) para criar células-tronco embrionária para combinar com o DNA específico de cada pessoa.
Potencial
As células-tronco têm um grande potencial na medicina, à medida que podem ser desenvolvidas em qualquer outro tipo de célula no corpo.
Ao se criar células do coração, por exemplo, talvez seja possível reparar os danos causados por um ataque cardíaco.
Já há alguns testes clínicos em curso. O primeiro feito com células-tronco embrionárias da Europa está sendo feito em Londres e é relacionado a um tratamento para a perda progressiva da visão.
O teste, porém, não usa as próprias células dos pacientes e por isso é necessário o uso de imunossupressores para evitar o risco de rejeição. E é por isso que o teste da equipe americana é tão importante.
Interrogação
O pesquisador Dieter Egli, do laboratório da Fundação de Células-Tronca de Nova York, afirma que havia até então um grande ponto de interrogação sobre a possibilidade de a técnica do clone ser usada em seres humanos.
“Outras equipes já haviam tentado, mas falharam”, disse, explicando que seu grupo também não conseguiu ser bem-sucedido ao usar as técnicas tradicionais.
Quando eles removeram o material genético de um óvulo e o substituíram com cromossomos de uma célula epitelial, o óvulo se dividiu, mas não passou do estágio de 6 a 12 células.
No entanto, quando eles deixaram o material genético no próprio óvulo e adicionaram os cromossomos epiteliais, o óvulo se desenvolveu até o estágio do blastocisto, que pode contar até 100 células e é usado como fonte para células-tronco embrionárias.
“As células produzidas por nossa equipe ainda não são para uso terapêutico. Ainda há muito a ser feito”, afirmou Egli à BBC. “Vemos isso como um passo adiante na estrada, porque agora sabemos que óvulos podem transformar células adultas especializadas, como células da pele, em células-tronco.”

BBC Brasil

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Os incas no topo do mundo

Da obscuridade aos pináculos do poder, uma sucessão de soberanos andinos conquistou reinos, esculpiu montanhas e forjou um poderoso império.

Por Heather Pringle
Foto de Robert Clark
Os incas no topo do mundo Encarapitado nos Andes peruanos, o refúgio real de Machu Picchu comprova a magistral engenharia dos incas, evidente nas pedras cortadas com precisão e nos terraços dispostos em cascata.
Na remota ilha Taquile, no meio do lago Titicaca, no Peru, centenas de pessoas estão reunidas em silêncio na praça enquanto o padre local faz uma oração. Descendentes, em parte, de colonos incas que ali chegaram mais de meio milênio atrás, os moradores de Taquile preservam os costumes tradicionais, tecendo panos de cores vivas, comunicando-se na antiga língua inca e cultivando a terra tal como vêm fazendo há séculos. Nos dias de festa, eles acorrem à praça para dançar ao som de flautas e tambores de madeira.
É uma bela tarde de verão, e observo as comemorações da festa de São Tiago. Na época dos incas, essa teria sido a festa de Illapa, o deus dos raios. Assim que termina a oração, quatro homens vestidos de preto erguem uma rústica liteira de madeira com a estatueta do santo cristão. Eles exibem a peça para que seja vista por todos na praça, como antes faziam os incas com as múmias de seus venerados reis.

Mesmo falecidos há tanto tempo, esses soberanos incas têm nomes que ainda ressoam altivos: Viracocha Inca ("Soberano Divino Criador"), Huascar Inca ("Soberano Corrente Dourada") e Pachacutec Inca Yupanqui ("Soberano Que Refaz o Mundo"). Originando-se no vale de Cusco, no Peru, durante o século 13, uma dinastia de reis incas seduziu, subornou, intimidou ou subjugou rivais, a fim de estabelecer o maior império précolombiano do Novo Mundo.

Durante muito tempo, os estudiosos contaram com poucos indícios sobre a vida desses monarcas, além dos relatos lisonjeadores com que os nobres incas brindaram os espanhóis logo após a conquista. Os incas não dispunham de nenhum sistema de escrita hieroglífica como a dos maias, e se perderam quaisquer retratos desses reis feitos por artistas. Os palácios de Cusco, a capital do império, logo foram tomados pelos europeus, e uma nova cidade colonial espanhola surgiu de suas ruínas. Em época mais recente, os conflitos que tomaram conta dos Andes peruanos no início da década de 1980 impediram durante uma
década que os arqueólogos se aventurassem nas áreas centrais do antigo Império Inca.

Agora, os arqueólogos estão compensando o tempo perdido. Vasculhando as encostas na região de Cusco, eles encontraram milhares de sítios desconhecidos, os quais vêm lançando novas luzes sobre o surgimento da dinastia Inca. Seguindo pistas em documentos da época colonial, especialistas localizaram de modo mais preciso as grandes propriedades de seus soberanos. Além disso, coletaram indícios dramáticos das guerras empreendidas pelos incas, que lhes permitiram fundir dezenas de grupos étnicos recalcitrantes em um reino unificado. A extraordinária capacidade que os incas demonstraram em prevalecer no campo de batalha e construir, tijolo por tijolo, uma civilização era um recado claro aos povos vizinhos, comenta o arqueólogo Dennis Ogburn. "Acho que estavam dizendo: 'Somos o povo mais poderoso do mundo; por isso nem pensem em mexer com a gente'. "

Em uma ensolarada tarde de julho, encontro o arqueólogo Brian Bauer, da Universidade de Illinois, na praça do imenso sítio cerimonial de Maukallacta, ao sul de Cusco. Ele toma um gole de água e aponta um afloramento de rocha cinzenta bem a leste. Em seu topo foram escavados enormes terraços, parte de um importante santuário inca. Cerca de 500 anos atrás, conta Bauer, para lá afluíam peregrinos que faziam suas devoções no íngreme afloramento considerado um dos pontos mais sagrados do império, pois assinalava o local de origem da dinastia Inca.

Bauer, de 54 anos, chegou pela primeira vez a Maukallacta na década de 1980. Sua intenção era pesquisar as origens do Império Inca. Na época, a maioria dos historiadores e arqueólogos acreditava que, no princípio do século 15, um brilhante e jovem Alexandre Magno andino, chamado Pachacutec, havia sido o primeiro monarca inca, o responsável por transformar vilarejos de choças de pau a pique em um poderoso império no espaço de uma única geração. Para Bauer, contudo, isso parecia pouco provável. Na opinião dele, a dinastia Inca tinha raízes bem mais profundas, as quais talvez pudessem ser desenterradas em Maukallacta. Para seu espanto, porém, duas temporadas de escavações não resultaram em nenhum sinal dos primitivos senhores incas.

Por isso, Bauer voltou-se em seguida para uma área mais ao norte, o vale de Cusco. Com o colega R. Alan Covey e uma equipe de assistentes, ele percorreu de cima a baixo as encostas íngremes durante quatro outras temporadas de pesquisa, registrando todos os aglomerados de cacos de cerâmica ou muros de pedra arruinados. A persistência valeu a pena. Bauer e colegas acabaram localizando milhares de sítios repletos de sinais que, pela primeira vez, revelaram como um Estado inca havia surgido bem antes do que se pensava - em algum momento entre 1200 e 1300. Os antigos senhores da região, os waris (huaris), que governavam de uma capital próxima à moderna Ayacucho, haviam sido apeados do poder por volta de 1100, em parte devido a uma seca rigorosa que devastou os Andes por um século ou mais. Durante as convulsões que se seguiram, chefes locais em todo o altiplano peruano se engalfinharam em disputas pela água escassa e promoveram ataques aos vilarejos vizinhos, em busca de alimentos. Hordas de refugiados tiveram de buscar abrigo nas áreas mais frias e ventosas acima de 4 mil metros de altitude.Todavia, no vale fértil e irrigado em torno de Cusco, os agricultores incas resistiram. Os vilarejos uniram-se, formando um pequeno Estado organizado para assegurar a própria defesa. Além disso, entre 1150 e 1300, os incas da área de Cusco também se beneficiaram de uma importante tendência de aquecimento no clima dos Andes.

Com o aumento da temperatura, os camponeses passaram a cultivar as encostas das montanhas de 250 a 300 metros acima do vale, construindo terraços planos, irrigando as plantações e colhendo safras abundantes de milho. "Tais excedentes", diz o paleontólogo Alex Chepstow-Lusty, do Instituto Francês de Estudos Andinos em Lima, permitiram que "muita gente fosse liberada para outras atividades, seja a construção de estradas, seja a formação de um exército." Com o tempo, os soberanos incas podiam mobilizar mais guerreiros e, assim, manter um exército maior que o de quaisquer outros chefes na região.

Dispondo de um poderio militar respeitável, os soberanos incas passaram a cobiçar as terras e os recursos alheios. Firmaram alianças matrimoniais com chefes vizinhos, tomando suas filhas como esposas, e recompensaram os novos aliados. Quando um potentado rival rejeitava suas propostas, não hesitavam em recorrer à força das armas. Em todos os vales circundantes, um a um os senhores locais foram sucumbindo até sobrar apenas um único Estado poderoso e uma única capital, a cidade sagrada de Cusco.

Embriagados com o sucesso, os reis incas voltaram os olhos para as terras ao redor do lago Titicaca. Em algum momento após o ano de 1400, um dos monarcas mais importantes, Pachacutec Inca Yupanqui, armou-se para a conquista do sul.

Em meados do século 15, concentrados em uma alta e gélida planície ao norte do imenso lago, os guerreiros collas exibiam-se ameaçadores com seus trajes de combate, desafiando os invasores incas. Pachacutec esquadrinhou em silêncio as linhas inimigas, preparando-se para a batalha. Os senhores da região do Titicaca eram homens altivos que governavam nada menos que 400 mil súditos, distribuídos em reinos às margens do lago. Suas terras eram ricas e desejáveis.
Ouro e prata eram abundantes nas montanhas, e rebanhos de alpaca e lhama pastavam em campinas luxuriantes. Nos Andes, qualquer campanha militar bem-sucedida dependia desses bichos. Único animal de carga do continente, cada lhama é capaz de levar no lombo até 30 quilos. Assim como a alpaca, proporcionava carne, couro e fibras para tecidos. Eles eram, ao mesmo tempo, os jipes, as rações e os uniformes militares da época. Se o soberano inca não conseguisse subjugar os senhores do Titicaca que controlavam esses rebanhos, ele passaria o resto da vida temendo o dia em que viriam em seu encalço.

Acomodado em uma liteira, Pachacutec deu a ordem de atacar. Tocando flautas de Pã feitas de ossos dos inimigos e tambores de guerra confeccionados com a pele esfolada dos adversários mortos, suas tropas avançaram sobre o exército colla, uma muralha móvel de terror e intimidação. Então ambos os lados se engajaram em uma luta furiosa. Quando baixou a poeira da batalha, o campo estava juncado de cadáveres collas.

Nos anos seguintes, Pachacutec e seus descendentes se impuseram a todos os senhores das terras meridionais. "A conquista da bacia do Titicaca foi a joia da coroa do império", diz Charles Stanish, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. E a vitória militar foi apenas o primeiro passo da estratégia inca para forjar um império. Quando eclodiam movimentos de resistência nas províncias, os incas promoviam deslocamentos compulsórios de populações, deportando os grupos mais inquietos para as áreas centrais do império e substituindo-os por súditos leais. Os moradores de remotos vilarejos amuralhados foram transferidos para os povoados fundados à margem dos novos caminhos - os quais também facilitavam a movimentação das tropas. Ao longo dessas estradas, os governadores ordenaram a construção de celeiros e obrigaram as comunidades locais a mantê-los abastecidos de provisões. "Os incas eram os gênios administrativos das Américas", comenta o arqueólogo Stanish.

A civilização andina prosperou como nunca. Engenheiros transformaram caminhos dispersos em um sistema de estradas interligadas. Seus agricultores aprenderam a lavrar a terra em altitude, cultivando cerca de 70 plantas nativas e mantendo nos celeiros grãos suficientes para atender à demanda de três a sete anos. Funcionários controlavam estoques, gerenciando o conteúdo dos armazéns em todo o reino graças à versão andina de um código para computação - constituído de cordões coloridos, os quipos, nos quais eram feitos nós. E os pedreiros incas ergueram obras arquitetônicas magistrais e atemporais, como Machu Picchu.Na época em que Huayna Capac subiu ao trono, por volta de 1493, pouca coisa parecia inacessível à dinastia Inca. Para realçar o esplendor de sua nova capital no Equador, Huayna Capac obrigou mais de 4,5 mil súditos rebeldes a carregar imensos blocos de pedra desde Cusco - uma distância de 1,6 mil quilômetros por vertiginosos caminhos montanhosos. No centro do império, um exército de homens e mulheres se esfalfava para erguer um complexo de palácios para o soberano. Por ordem dele, desviou-se o curso do rio Urubamba. Colinas foram arrasadas, e pântanos, drenados e semeados com milho, algodão, amendoim e pimenta. No centro do complexo, os trabalhadores assentaram as pedras para o novo palácio de Huayna Capac, o Quispiguanca.

Com os raios de sol já inclinados num fim de tarde, passeio pelas ruínas de Quispiguanca com o arqueólogo Alan Covey. Situado na periferia da atual cidadezinha de Urubamba, Quispiguanca desfruta do mais quente e ensolarado microclima da região, proporcionando à família real um agradável alívio do frio de Cusco. As construções que servem de entrada à propriedade hoje dão para um perfumado campo de coentro, e as muralhas restantes circundam um conjunto de edifícios que antes se estendia por uma área equivalente a cerca de sete campos de futebol.

Rodeado de parques, campos e jardins, Quispiguanca era um local para se afastar do mundo, onde o rei-guerreiro podia se descontrair após as campanhas bélicas. Huayna Capac recebia os convidados em salões e divertia-se jogando com cortesãos, enquanto a rainha cuidava do jardim e criava pombos. O soberano desfrutava de safras abundantes e de chicha, uma cerveja de milho, em quantidade suficiente para entreter seus súditos por ocasião das festas anuais em Cusco. Quispiguanca não era o único desses domínios da realeza. Arqueólogos já localizaram as ruínas de uma dúzia desses complexos arquitetônicos.

Mesmo após a morte, os reis continuavam poderosos. "Os ancestrais eram muito importantes na vida inca", comenta Sonia Guillén, diretora do Museu Leymebamba, em Cusco. Ao morrer de uma misteriosa enfermidade no Equador, por volta de 1527, Huayna Capac foi mumificado e levado de volta a Cusco. Membros da família real visitavam o falecido para pedir aconselhamento em questões vitais e seguir as orientações proferidas pelo oráculo que se sentava ao lado da
múmia. Anos depois de morrer, Huayna Capac continuava sendo o senhor de Quispiguanca.

durante a estação das chuvas de 1533, época auspiciosa para a coroação, milhares de pessoas se aglomeraram na praça central de Cusco para comemorar a chegada de seu novo monarca adolescente. Dois anos antes, em meio a uma guerra civil, estrangeiros haviam desembarcado no norte do império. Vestindo armaduras de metal e empunhando armas letais, os espanhóis haviam avançado contra o vilarejo de Cajamarca, onde aprisionaram o rei Atahuallpa. Após oito meses de cativeiro, eles executaram o soberano e, em 1533, o líder dos conquistadores, Francisco Pizarro, escolheu um jovem príncipe, Manco Inca Yupanqui, para encabeçar um governo títere.

Ao longe, as vozes dos carregadores do jovem rei ecoaram pelas ruas, entoando louvores. Logo depois veio o silêncio e os celebrantes viram o adolescente real entrar na praça, acompanhado das múmias de seus antepassados, cada qual em uma esplêndida liteira. Secos e encarquilhados, esses soberanos e suas consortes eram um lembrete a todos de que Manco Inca pertencia a uma longa linhagem de reis. Nos meses seguintes, os espanhóis se apoderaram dos palácios de Cusco e das propriedades rurais dos soberanos, e fizeram das mulheres da realeza suas amantes e concubinas. Enfurecido, Manco Inca rebelou-se e, em 1536, tentou expulsá-los do reino. Quando seu exército foi derrotado, ele fugiu de Cusco e refugiou-se em uma cidade na selva, Vilcabamba, de onde passou a fustigar os invasores com ataques de guerrilha. Apenas em 1572 os espanhóis conseguiriam destruir o reduto do rei inca.

No decorrer dessas agitadas décadas, a enorme rede de caminhos, celeiros, templos e propriedades incas pouco a pouco foi se arruinando. Enquanto o Estado se desintegrava, os incas e seus descendentes tentaram preservar os símbolos da autoridade imperial. Os corpos preciosos dos reis sagrados foram recolhidos e escondidos nos arredores de Cusco, onde eram venerados em segredo - e em desafio aos padres espanhóis. Em 1559, o juiz corregedor de Cusco, Juan Polo
de Ondegardo, decidiu pôr fim a essa idolatria, promovendo uma busca oficial pelas múmias, durante a qual foram interrogadas centenas de pessoas. Conseguiu localizar e apreender os restos mortais de 11 reis e várias rainhas incas.Durante um tempo, as autoridades coloniais exibiram as múmias de Pachacutec, Huayna Capac e dois outros reis como curiosidades no Hospital de San Andrés, em Lima, local que na época apenas admitia pacientes de origem europeia. Mas, como o clima úmido do litoral provocava a decomposição das múmias, os espanhóis viram-se forçados a sepultar em segredo em Lima os principais soberanos incas - longe dos Andes e dos súditos que os amavam e veneravam.

Em 2001, Brian Bauer e dois colegas peruanos, o historiador Teodoro Hampe Martínez e o arqueólogo Antonio Coello Rodríguez, decidiram encontrar as múmias dos monarcas, com o objetivo de sanar uma injustiça histórica e devolver aos peruanos uma parte de seu legado cultural.

Durante meses, Bauer e colegas debruçaramse sobre velhas plantas arquitetônicas do Hospital de San Andrés, hoje uma escola para meninas no centro de Lima. No fim, acabaram por identificar vários locais em que Pachacutec e Huayna Capac poderiam ter sido enterrados. Usando um radar que penetra o solo, descobriram o que parecia ser uma cripta subterrânea com abóbada.

Mas, quando realizaram a escavação, a decepção foi geral: não havia nada na cripta. "É bem provável", diz Bauer, "que o conteúdo tenha sido removido quando o hospital foi reformado após um tremor de terra." Até hoje ninguém sabe onde foram parar os corpos dos maiores reis do Peru.

  National Geographic  Brasil

Muito jovem para se casar

Muito jovem para se casar

O mundo secreto das noivas crianças

Por Cynthia Gorney
Foto de Stephanie Sinclair
Muito jovem para se casar "Eu me escondia toda vez que o via. Detestava olhar para ele", diz Tahani (de rosa), lembrando-se do início de seu casamento com Majed, quando tinha 6 anos, e ele, 25. Agora com 8 anos, ela posa para um retrato em Hajjah, juntamente com Ghada, também casada.
Na Índia, a maioria dos casamentos é arranjada pelos pais. Um casamento forte é visto como a união de duas famílias, não de dois indivíduos. E isso, acredita-se, exige cuidadosa negociação entre gente mais velha - e não entre jovens, que seguem os volúveis impulsos do coração. Assim, em comunidades muito pobres, nas quais a perspectiva de casamento para moças não virgens é considerada nula, e tem sido assim há muitas gerações, é possível perceber por que até o mais dedicado militante contra o casamento infantil pode hesitar, sem saber por onde começar. "Um de nossos funcionários foi procurado por um pai frustrado", conta Sreela Das Gupta, especialista em saúde de Nova Délhi que já trabalhou para o Centro Internacional de Estudos sobre as Mulheres (IC RW, na sigla em inglês), uma das várias ONGs que combatem o casamento infantil. "Esse pai disse: 'Se eu concordar em casar a minha filha só quando ela estiver mais velha, vocês se responsabilizarão pela proteção dela?' O funcionário desmoronou: 'O que vou dizer a esse homem se ela for estuprada aos 14 anos?' Não temos resposta a uma pergunta dessas."

certo dia no início do verão, semanas depois de começar a investigar o mundo das meninas que devem se casar muito novas, ouço a história da ratinha e do elefante. Estou no banco de trás de um pequeno carro no remoto oeste do Iêmen, viajando com um homem chamado Mohammed, que se ofereceu para nos levar a um vilarejo distante. "O que aconteceu nesse vilarejo me incomodou", diz ele. "Havia lá uma menina chamada Ayesha." (A esposa mais nova do profeta Muhammad, ou Maomé, também se chamava Ayesha, mas isso agora não vem ao caso para este Mohammed.) Ele está colérico. "Ela tem 10 anos", diz. "Um tiquinho de gente. O homem com quem se casou tem 50 anos e um barrigão deste tamanho" - e faz um grande arco com os braços abertos na altura do umbigo. "Era uma ratinha casando com um elefante."

Em seguida, ele descreve o trato chamado shighar, no qual dois homens fornecem noivas um ao outro, trocando entre si mulheres da família. "Cada um deu sua filha ao outro como esposa", conta Mohammed. "Acho que ninguém teria denunciado não fosse a diferença de idade entre os noivos. Mas uma menina não deve se casar aos 9 ou 10 anos. Talvez aos 15 ou 16."

Nas casas de pedra e concreto do vilarejo que visitamos vivem 50 famílias entre pés de cacto e ressequidos terrenos arados. O xeque, líder local, é baixote, de barba ruiva, e anda de celular no cinto ao lado da tradicional adaga iemenita. Ele nos leva até uma casa de teto baixo abarrotada de mulheres, bebês e meninas. Estão sentadas no chão atapetado e nas camas, e cada vez chegam mais e se espremem na multidão depois de passar agachadas pela mesma porta que atravessamos. O xeque, acocorado no meio do grupo, ralha com elas, carrancudo. Ele me olha desconfiado. "E você, tem filhos?", pergunta.

"Dois", respondo. "Só dois!", exclama consternado. Aponta com a cabeça uma jovem que amamenta um bebê enquanto afasta duas crianças pequenas com o outro braço. "Aquela moça fez 26 anos", diz ele. "E tem dez."Ela chama-se Suad. É filha do xeque. Tinha 14 anos quando o pai a casou com um primo que ele escolhera. "Gostei dele", diz Suad, em voz baixa, sob o olhar fixo do xeque. "Fiquei contente."

O xeque então faz várias declarações sobre o casamento. Diz que nenhum pai força uma filha a se casar contra a vontade. Diz que os riscos do parto para as muito jovens não são tão grandes como se apregoa por aí. Ressalta que a iniciação na vida matrimonial não é necessariamente fácil para a noiva, mas que não adianta fazer barulho por causa disso. "Claro que toda garota sente medo em sua primeira noite", pondera ele. "Porém, ela se acostuma. A vida continua."

O telefone trina. O xeque vai atender lá fora. Tiro o lenço da cabeça, imitando o que vi minha intérprete fazer quando os homens se retiram e as mulheres enfim podem conversar a sós. Perguntamos depressa a elas como são preparadas para a noite de núpcias, se lhes explicam o que vai acontecer. Elas olham para a porta onde o xeque está absorto no telefonema. Inclinamse para mim. "As meninas não sabem", diz uma. "Os homens sabem, e as forçam."

Pedimos que nos contem sobre a pequena Ayesha e o marido-elefante de 50 anos. A dimensão do episódio fica mais clara quando todas desatam a falar ao mesmo tempo. Sim, foi uma coisa horrível, concordam. Deveria ser proibido, mas elas nada puderam fazer. A pequena Ayesha gritou quando viu o homem com quem seria casada, diz uma moça chamada Fatima, que, descubro, é a irmã mais velha de Ayesha. Alguém avisou a polícia, mas o pai de Ayesha mandou que ela calçasse sapato de salto para parecer mais alta e escondesse o rosto com um véu. Avisou que, se o prendessem, mataria Ayesha quando saísse da cadeia. A polícia foi embora sem incomodar ninguém, e agora - as mulheres falam mais depressa e mais baixo ainda, pois o xeque parece estar terminando a conversa - Ayesha está casada e mora em um vilarejo a duas horas dali.

"Ela tem um celular", diz Fatima. "Todo dia me liga chorando."

"se Casar-se cedo oferecesse algum risco, Alá teria proibido", diz um parlamentar iemenita chamado Mohammed Al-Hamzi na capital do país, Sanaa. "O que o próprio Alá não proibiu não podemos proibir." Al-Hamzi, um conservador religioso, é ferrenho opositor dos esforços legislativos no Iêmen para proibir o casamento de meninas até certa idade (17 anos, em uma versão recente). Até agora, esses esforços têm sido em vão. O Islã não permite relações conjugais antes que a menina esteja fisicamente pronta, diz ele, mas o Alcorão Sagrado não menciona nenhuma restrição de idade - portanto, essa decisão é da alçada da família e da orientação religiosa, e não da lei nacional. Além disso, há a questão da amada esposa do profeta Maomé, Ayesha, que, segundo a interpretação convencional, tinha 9 anos quando o casamento foi consumado.Outros muçulmanos iemenitas me falaram da interpretação acadêmica segundo a qual Ayesha, na verdade, era mais velha quando teve relações conjugais. Talvez fosse adolescente; talvez tivesse uns 20 anos ou mais. De qualquer modo, a idade exata dela não interessa, acrescentaram com severidade. Qualquer homem hoje em dia que reivindique o casamento com uma menina desonra a fé. "No Islã, o corpo humano é muito valioso. Como uma joia", explica Najeeb Saeed Ghanem, presidente do Comitê de Saúde e População do Parlamento iemenita. Ele enumera algumas das consequências físicas de forçar garotas a ter relações sexuais e partos antes da maturidade do corpo. Dilaceramento da parede vaginal. Fístulas, rupturas internas que podem acarretar incontinência urinária para o resto da vida. Meninas em pleno trabalho de parto a quem as enfermeiras têm de explicar a mecânica da reprodução humana. "As enfermeiras começam perguntando se ela sabe o que está acontecendo", revela uma pediatra em Sanaa. "Sabe que é um bebê que está crescendo dentro de você?"

Na sociedade iemenita não se fala às claras sobre sexo. Nem mesmo entre mães instruídas e suas filhas. A realidade desses casamentos - o conhecimento velado de que alguns pais estão mesmo dispostos a entregar suas meninas a homens adultos - raramente era comentada com liberdade até três anos atrás, quando Nujood Ali, a menina de 10 anos, ganhou súbita fama mundial por se rebelar contra o casamento infantil. Para os iemenitas, a grande surpresa na história de Nujood não foi o fato de ela ter sido obrigada pelo pai a desposar um homem com o triplo de sua idade nem que o homem a forçou a ter relações sexuais na primeira noite, apesar de supostas promessas de esperar até que fosse mais velha - um ato que mereceu a aprovação da sogra e da cunhada de Nujood quando foram examinar os lençóis ensanguentados antes de levantarem a menina da cama pela manhã e lhe darem banho. Não. Nada disso era de espantar. A surpresa foi Nujood ter reagido.

"A demanda dela na Justiça foi a pedra que perturbou a superfície das águas", diz um dos jornalistas iemenitas que começou a escrever sobre Nujood depois que apareceu sozinha em um tribunal em Sanaa. A menina fugiu do marido e voltou para a casa dos pais. Contestou quando o pai lhe disse aos gritos que a honra da família dependia de que ela cumprisse suas obrigações conjugais. A mãe, intimidada, não interferiu. Foi a segunda esposa do pai que enfim deu a Nujood a bênção e o dinheiro para o táxi, e lhe disse para onde ir. Quando o juiz, pasmo, lhe perguntou o que estava fazendo sozinha no tribunal da cidade grande, Nujood respondeu que viera pedir o divórcio. Uma eminente advogada iemenita incumbiu-se da ação judicial de Nujood. Novas reportagens começaram a ser publicadas em inglês, primeiro no Iêmen, depois mundo afora; tanto as manchetes como a própria Nujood eram irresistíveis, e, quando ela enfim obteve o divórcio, uma multidão no tribunal de Sanaa irrompeu em aplausos. Ela foi convidada a ir aos Estados Unidos para ser homenageada por um público bem maior.

Todos os que conheceram Nujood ficaram desconcertados com a perturbadora combinação de seriedade e segurança da garota ienemita. Eu a encontro na redação de um jornal em Sanaa; ela veste uma abaya preta de tamanho infantil - o traje com que muitas mulheres iemenitas se cobrem dos pés à cabeça depois da puberdade. Embora ela agora tenha viajado para o outro lado do Atlântico e sido sabatinada por dezenas de adultos inquisitivos, Nujood responde às minhas perguntas com tanta meiguice e prontidão como se as ouvisse pela primeira vez. No almoço ela senta-se perto de mim em um tapete de oração e me mostra como molhar o pão árabe na panela de guisado partilhada com todos à mesa. Conta que está morando novamente com os pais e indo à escola (seu pai, criticado, aceitou a filha de volta com relutância). E orgulha-se em dizer que, em seus cadernos, está agora escrevendo uma carta aberta a todos os pais iemenitas: "Não deixem que suas crianças se casem. Vocês arruinarão a educação delas, e também a infância, se permitirem que se casem tão novas".

A teoria da mudança social tem uma denominação imaginosa para indivíduos com o comportamento de Nujood Ali: "desviantes positivos". São agentes isolados em uma comunidade que, por alguma combinação pessoal de circunstância e coragem, conseguem desafiar a tradição e tentar algo novo, talvez radical. Agora as campanhas internacionais contra o casamento infantil incluem, entre os desviantes positivos, um punhado de mães, pais, avós, professoras e assistentes de saúde comunitária, entre outros.Ainda no Iêmen, conheço Reem, uma menina de 12 anos que obteve o divórcio alguns meses depois de Nujood. Ela acabou conquistando uma juíza, antes hostil, que insistira, de forma memorável, que uma esposa tão nova ainda não tinha maturidade para tomar qualquer decisão sobre divórcio. Depois, na Índia, sou apresentada a Sunil, de 13 anos. Aos 11, jurou aos pais que recusaria o noivo que estava a caminho; se tentassem obrigá-la, declarou, os denunciaria à polícia e racharia a cabeça do pai. "Ela veio nos pedir ajuda", conta uma vizinha admirada. "Disse que iria partir a cabeça dele com uma pedra."

O esforço para beneficiar muitas outras meninas e suas famílias por meio de programas educacionais e esparso apoio de governos e entidades pretende abranger mais que os casamentos de pré-púberes, que provocam com mais facilidade a indignação do público. "As pessoas adoram esse tipo de história, em que o certo e o errado são inequívocos", diz Saranga Jain, especialista em saúde do adolescente. Mas a maioria das garotas que se casam muito cedo tem entre 13 e 17 anos. Queremos reformular a questão para que não englobe só as meninas muito novas."

Segundo o IC RW, qualquer casamento de menor de 18 anos é casamento infantil. E, embora seja impossível calcular com exatidão, estudiosos estimam que, por ano, nos países em desenvolvimento, entre 10 milhões e 12 milhões de meninas nessa faixa etária se casam. Os esforços para reduzir esse número levam em conta que várias forças impelem uma adolescente ao casamento e aos filhos, anulando assim suas chances de se educar e ser bem remunerada. A coerção nem sempre vem na forma de pais dominadores. Algumas meninas abrem mão da infância porque isso é esperado delas ou porque sua comunidade não lhes oferece alternativas. O que parece funcionar melhor nos programas bem-sucedidos para retardar o casamento é o incentivo local, não o castigo: estímulos diretos para que as meninas sejam mantidas na escola, além de instituições de ensino com melhores condições. Na Índia são treinadas agentes de saúde comunitária chamadas de sathins, que fazem acompanhamento voltado ao bem-estar das famílias de sua região; entre suas tarefas está lembrar os moradores de que casamento infantil não só é crime mas também prejudica suas filhas.

Porque a grande falha na fantasia de pegar a menina e fugir é: e depois? "Se separarmos uma menina e a isolarmos de sua comunidade, como será sua vida?", pergunta Molly Melching, fundadora da Tolstan, uma organização com sede no Senegal respeitada em todo o mundo por promover programas comunitários que motivam as pessoas a abandonar o casamento infantil e a mutilação genital feminina. Os militantes da Tolstan estimulam as comunidades a fazer declarações públicas sobre seus critérios com as crianças para que nenhuma garota seja considerada diferente se não a casarem na infância.

"Não queremos encorajar as meninas a fugir", acrescenta Molly. "Para mudar as normas sociais, o certo não é tentar exterminá-las. Nem humilhar as pessoas chamando-as de retrógradas. Notamos que uma comunidade inteira pode acolher a mudança naturalmente. Isso é inspirador."

Quem me explicou de forma mais eloquente o excruciante malabarismo necessário para se crescer independente e respeitável em uma cultura em que vigora o casamento infantil foi uma jovem de 17 anos do Rajastão chamada Shobha Choudhary. Na primeira vez em que a vi estava de uniforme escolar: blusa branca por dentro da saia escura pregueada. De porte ereto e sobrancelhas severas, trazia o cabelo preto brilhante preso em um rabo-de-cavalo. Tinha a aparência de uma aluna exemplar. Estava no último ano do ensino médio, e era uma excelente estudante. Fora descoberta em seu vilarejo anos antes pelo Projeto Veerni, que envia agentes a todo o norte da Índia em busca de meninas inteligentes cujos pais talvez permitam que elas deixem o lar e tenham educação gratuita em um colégio interno para meninas na cidade de Jodhpur.Shobha, contudo, é casada desde os 8 anos. E tenta me fazer imaginar a ocasião: uma cerimônia coletiva com mais de dez meninas do vilarejo. "Todas com belas roupas novas", me conta com um sorriso amargo. "Eu não sabia o que significava casamento. Estava feliz da vida."

Sim, diz ela, encontrara-se com seu jovem marido depois do casamento. Mas por pouco tempo. Ele é alguns anos mais velho, e até agora ela conseguira adiar a gauna. Shobha desvia os olhos quando pergunto sua opinião sobre o marido, e revela que ele não tem estudo. Nos entreolhamos, e a jovem balança a cabeça: não, não há nenhuma possibilidade de trazer desgraça a seus pais ao retardar a gauna para sempre. "Tenho de viver com ele. É o destino. Eu o farei estudar e compreender as coisas. Mas não o deixarei."

O grande sonho de Shobha é ir para a universidade. Seu plano, depois de formada, é ser aceita na polícia indiana e se especializar na execução da lei que proíbe o casamento infantil. Escreve um diário desde que começou o ensino médio. Uma das anotações, em caprichosos caracteres hindis, diz: "Diante de meus olhos jamais permitirei que aconteçam casamentos de crianças. Salvarei cada uma das meninas".

Toda as vezes em que vou ao vilarejo de Shobha, seus pais servem chai, um chá com especiarias, em suas melhores xícaras, e as histórias sobre a garota vão ganhando densidade sob as camadas de orgulho, inquietude e desconfiança quanto às intenções da visitante estrangeira. Não, não foi casamento! Foi só uma festa de noivado! Está bem, foi casamento, mas aconteceu antes de o pessoal do Veerni ter feito sua generosa oferta, assombrados com a capacidade intelectual de Shobha. Foi a menina, dizem, quem descobriu como conseguir instalação elétrica em casa para que ela e seus irmãos mais novos pudessem estudar depois de escurecer. "Hoje eu sei assinar", diz a mãe de Shobha. "Ela me ensinou a escrever o meu nome." Mas agora seus pais davam a entender que esse belo episódio na vida da família estava terminando. Chegara a hora. O marido vem telefonando para o celular de Shobha; ele exige uma data. E a avó sempre quis que a gauna acontecesse antes de a neta ficar velha.

As aulas em Jodhpur são ao mesmo tempo a paixão de Shobha e sua tática de postergação, mas a bolsa do Veerni só cobre o ensino médio. Para continuar os estudos e arcar com os custos da faculdade, ela precisa de um doador. O e-mail chega depois que já estou de volta aos Estados Unidos. "Como tem passado? Estou com saudade. Vou cursar letras. No primeiro ano, gostaria de estudar também inglês e computação. Por favor, responda sem demora, pois a data da matrícula na faculdade está próxima."

"Vejamos o que acontece", me fala Shobha na última vez em que nos encontramos na Índia. "Venha o que vier, precisarei me adaptar. Porque as mulheres têm de fazer sacrifício." Estamos na cozinha de sua família naquela tarde, e minha voz sai mais alto do que eu pretendo: por que as mulheres é que têm de se sacrificar, pergunto, e o jeito como Shobha me olha sugere que só uma de nós, naquele momento, entende o mundo em que ela vive. "Porque neste país as coisas são feitas para os homens", diz ela.Meu marido e eu decidimos fazer a doação para que Shobha fosse para a faculdade.

Hoje ela já tem mais de um ano de estudos depois do ensino médio: computação, preparação para os exames de admissão na polícia. De vez em quando, me manda um e-mail. Seu inglês ainda é vacilante, mas está progredindo. Um dia, minha intérprete em hindi de Jodhpur pede emprestada uma videocâmara e conversa com ela em meu nome em um café. Shobha conta que está estudando para um exame. Mora na cidade, em uma pensão segura para moças. Seu marido ainda telefona com frequência. A gauna ainda não se concretizou. Ela fita a câmera e, com um sorriso largo, anuncia em inglês: "Nada é impossível, dona Cynthia. Tudo é possível".

Dois dias depois de eu ter recebido esse vídeo, chega um comunicado do Iêmen. Saiu nos jornais que uma noiva de um vilarejo deu entrada no hospital em Sanaa quatro dias depois de seu casamento. Sofrera ruptura de órgãos internos por relações sexuais, disse o pessoal do hospital. Morreu de hemorragia. Ela tinha 13 anos.
National Geographic Brasil

Pinturas pré-históricas em caverna são de crianças de '3 a 7 anos'


Gravuras em caverna de Rouffignac (PA)
Sulcos foram feitos por dedos de crianças de três a sete anos
Pinturas pré-históricas encontradas em uma caverna na França foram feitas por crianças pequenas, com idades entre três e sete anos, apontam pesquisas recentes.
São sulcos feitos com os dedos, que resultam em desenhos de mamutes e outros animais. Eles foram descobertos na chamada Caverna dos Cem Mamutes, em Rouffignac, e datam de cerca de 13 mil anos atrás.
Os sulcos parecem ter sido feitos por dedos pequenos, de crianças, que passavam as mãos na superfície macia das paredes da caverna.
Pesquisadores da Universidade de Cambridge agora afirmam terem conseguido identificar a idade e o sexo dos jovens artistas das cavernas.
"Os sulcos feitos por crianças aparecem em todas as partes da caverna", diz a arqueóloga Jess Cooney, da Universidade de Cambridge, que comandou as pesquisas ao lado de Leslie Van Gelder, da Universidade Walden (EUA).
"Encontramos marcas de crianças de três a sete anos – e conseguimos identificar (os desenhos de) quatro crianças específicas ao comparar suas marcas."
Segundo ela, a criança mais prolífica no desenho de gravuras tinha ao redor de cinco anos. "E temos quase certeza de que essa criança era uma menina."
'Lugar especial'
Gravuras em caverna de Rouffignac (PA)
Desenhos podem ser parte de ritual de iniciação ou apenas uma simples brincadeira infantil
A cada ano, milhares de pessoas visitam a caverna, na região de Dordogne (oeste da França), para admirar os desenhos de mamutes, cavalos e rinocerontes, nas paredes dos 8 km de caverna que foram descobertas no século 16.
Mas só em 1956 é que os especialistas perceberam que alguns dos desenhos eram pré-históricos. Depois, em 2006, notaram que as pinturas haviam sido feitas por crianças, com seus dedos.
Diferentemente de rabiscos também encontrados na caverna, as pinturas não continham pigmentos de tinta.
"Uma caverna é tão rica em sulcos feitos com (dedos de) crianças que parece ter sido um lugar especial para elas. Mas é impossível saber se (a prática) era para brincar ou parte de um ritual", diz Cooney.
Pinturas feitas com sulcos de dedos também já foram encontradas em cavernas na Espanha, na Nova Guiné e na Austrália.
"Não sabemos porque as pessoas as faziam", agrega Cooney, admitindo que os desenhos podem ser parte de "rituais de iniciação" ou "simplesmente algo pra ocupar o tempo durante um dia chuvoso".

BBC  Brasil