segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Os incas no topo do mundo

Da obscuridade aos pináculos do poder, uma sucessão de soberanos andinos conquistou reinos, esculpiu montanhas e forjou um poderoso império.

Por Heather Pringle
Foto de Robert Clark
Os incas no topo do mundo Encarapitado nos Andes peruanos, o refúgio real de Machu Picchu comprova a magistral engenharia dos incas, evidente nas pedras cortadas com precisão e nos terraços dispostos em cascata.
Na remota ilha Taquile, no meio do lago Titicaca, no Peru, centenas de pessoas estão reunidas em silêncio na praça enquanto o padre local faz uma oração. Descendentes, em parte, de colonos incas que ali chegaram mais de meio milênio atrás, os moradores de Taquile preservam os costumes tradicionais, tecendo panos de cores vivas, comunicando-se na antiga língua inca e cultivando a terra tal como vêm fazendo há séculos. Nos dias de festa, eles acorrem à praça para dançar ao som de flautas e tambores de madeira.
É uma bela tarde de verão, e observo as comemorações da festa de São Tiago. Na época dos incas, essa teria sido a festa de Illapa, o deus dos raios. Assim que termina a oração, quatro homens vestidos de preto erguem uma rústica liteira de madeira com a estatueta do santo cristão. Eles exibem a peça para que seja vista por todos na praça, como antes faziam os incas com as múmias de seus venerados reis.

Mesmo falecidos há tanto tempo, esses soberanos incas têm nomes que ainda ressoam altivos: Viracocha Inca ("Soberano Divino Criador"), Huascar Inca ("Soberano Corrente Dourada") e Pachacutec Inca Yupanqui ("Soberano Que Refaz o Mundo"). Originando-se no vale de Cusco, no Peru, durante o século 13, uma dinastia de reis incas seduziu, subornou, intimidou ou subjugou rivais, a fim de estabelecer o maior império précolombiano do Novo Mundo.

Durante muito tempo, os estudiosos contaram com poucos indícios sobre a vida desses monarcas, além dos relatos lisonjeadores com que os nobres incas brindaram os espanhóis logo após a conquista. Os incas não dispunham de nenhum sistema de escrita hieroglífica como a dos maias, e se perderam quaisquer retratos desses reis feitos por artistas. Os palácios de Cusco, a capital do império, logo foram tomados pelos europeus, e uma nova cidade colonial espanhola surgiu de suas ruínas. Em época mais recente, os conflitos que tomaram conta dos Andes peruanos no início da década de 1980 impediram durante uma
década que os arqueólogos se aventurassem nas áreas centrais do antigo Império Inca.

Agora, os arqueólogos estão compensando o tempo perdido. Vasculhando as encostas na região de Cusco, eles encontraram milhares de sítios desconhecidos, os quais vêm lançando novas luzes sobre o surgimento da dinastia Inca. Seguindo pistas em documentos da época colonial, especialistas localizaram de modo mais preciso as grandes propriedades de seus soberanos. Além disso, coletaram indícios dramáticos das guerras empreendidas pelos incas, que lhes permitiram fundir dezenas de grupos étnicos recalcitrantes em um reino unificado. A extraordinária capacidade que os incas demonstraram em prevalecer no campo de batalha e construir, tijolo por tijolo, uma civilização era um recado claro aos povos vizinhos, comenta o arqueólogo Dennis Ogburn. "Acho que estavam dizendo: 'Somos o povo mais poderoso do mundo; por isso nem pensem em mexer com a gente'. "

Em uma ensolarada tarde de julho, encontro o arqueólogo Brian Bauer, da Universidade de Illinois, na praça do imenso sítio cerimonial de Maukallacta, ao sul de Cusco. Ele toma um gole de água e aponta um afloramento de rocha cinzenta bem a leste. Em seu topo foram escavados enormes terraços, parte de um importante santuário inca. Cerca de 500 anos atrás, conta Bauer, para lá afluíam peregrinos que faziam suas devoções no íngreme afloramento considerado um dos pontos mais sagrados do império, pois assinalava o local de origem da dinastia Inca.

Bauer, de 54 anos, chegou pela primeira vez a Maukallacta na década de 1980. Sua intenção era pesquisar as origens do Império Inca. Na época, a maioria dos historiadores e arqueólogos acreditava que, no princípio do século 15, um brilhante e jovem Alexandre Magno andino, chamado Pachacutec, havia sido o primeiro monarca inca, o responsável por transformar vilarejos de choças de pau a pique em um poderoso império no espaço de uma única geração. Para Bauer, contudo, isso parecia pouco provável. Na opinião dele, a dinastia Inca tinha raízes bem mais profundas, as quais talvez pudessem ser desenterradas em Maukallacta. Para seu espanto, porém, duas temporadas de escavações não resultaram em nenhum sinal dos primitivos senhores incas.

Por isso, Bauer voltou-se em seguida para uma área mais ao norte, o vale de Cusco. Com o colega R. Alan Covey e uma equipe de assistentes, ele percorreu de cima a baixo as encostas íngremes durante quatro outras temporadas de pesquisa, registrando todos os aglomerados de cacos de cerâmica ou muros de pedra arruinados. A persistência valeu a pena. Bauer e colegas acabaram localizando milhares de sítios repletos de sinais que, pela primeira vez, revelaram como um Estado inca havia surgido bem antes do que se pensava - em algum momento entre 1200 e 1300. Os antigos senhores da região, os waris (huaris), que governavam de uma capital próxima à moderna Ayacucho, haviam sido apeados do poder por volta de 1100, em parte devido a uma seca rigorosa que devastou os Andes por um século ou mais. Durante as convulsões que se seguiram, chefes locais em todo o altiplano peruano se engalfinharam em disputas pela água escassa e promoveram ataques aos vilarejos vizinhos, em busca de alimentos. Hordas de refugiados tiveram de buscar abrigo nas áreas mais frias e ventosas acima de 4 mil metros de altitude.Todavia, no vale fértil e irrigado em torno de Cusco, os agricultores incas resistiram. Os vilarejos uniram-se, formando um pequeno Estado organizado para assegurar a própria defesa. Além disso, entre 1150 e 1300, os incas da área de Cusco também se beneficiaram de uma importante tendência de aquecimento no clima dos Andes.

Com o aumento da temperatura, os camponeses passaram a cultivar as encostas das montanhas de 250 a 300 metros acima do vale, construindo terraços planos, irrigando as plantações e colhendo safras abundantes de milho. "Tais excedentes", diz o paleontólogo Alex Chepstow-Lusty, do Instituto Francês de Estudos Andinos em Lima, permitiram que "muita gente fosse liberada para outras atividades, seja a construção de estradas, seja a formação de um exército." Com o tempo, os soberanos incas podiam mobilizar mais guerreiros e, assim, manter um exército maior que o de quaisquer outros chefes na região.

Dispondo de um poderio militar respeitável, os soberanos incas passaram a cobiçar as terras e os recursos alheios. Firmaram alianças matrimoniais com chefes vizinhos, tomando suas filhas como esposas, e recompensaram os novos aliados. Quando um potentado rival rejeitava suas propostas, não hesitavam em recorrer à força das armas. Em todos os vales circundantes, um a um os senhores locais foram sucumbindo até sobrar apenas um único Estado poderoso e uma única capital, a cidade sagrada de Cusco.

Embriagados com o sucesso, os reis incas voltaram os olhos para as terras ao redor do lago Titicaca. Em algum momento após o ano de 1400, um dos monarcas mais importantes, Pachacutec Inca Yupanqui, armou-se para a conquista do sul.

Em meados do século 15, concentrados em uma alta e gélida planície ao norte do imenso lago, os guerreiros collas exibiam-se ameaçadores com seus trajes de combate, desafiando os invasores incas. Pachacutec esquadrinhou em silêncio as linhas inimigas, preparando-se para a batalha. Os senhores da região do Titicaca eram homens altivos que governavam nada menos que 400 mil súditos, distribuídos em reinos às margens do lago. Suas terras eram ricas e desejáveis.
Ouro e prata eram abundantes nas montanhas, e rebanhos de alpaca e lhama pastavam em campinas luxuriantes. Nos Andes, qualquer campanha militar bem-sucedida dependia desses bichos. Único animal de carga do continente, cada lhama é capaz de levar no lombo até 30 quilos. Assim como a alpaca, proporcionava carne, couro e fibras para tecidos. Eles eram, ao mesmo tempo, os jipes, as rações e os uniformes militares da época. Se o soberano inca não conseguisse subjugar os senhores do Titicaca que controlavam esses rebanhos, ele passaria o resto da vida temendo o dia em que viriam em seu encalço.

Acomodado em uma liteira, Pachacutec deu a ordem de atacar. Tocando flautas de Pã feitas de ossos dos inimigos e tambores de guerra confeccionados com a pele esfolada dos adversários mortos, suas tropas avançaram sobre o exército colla, uma muralha móvel de terror e intimidação. Então ambos os lados se engajaram em uma luta furiosa. Quando baixou a poeira da batalha, o campo estava juncado de cadáveres collas.

Nos anos seguintes, Pachacutec e seus descendentes se impuseram a todos os senhores das terras meridionais. "A conquista da bacia do Titicaca foi a joia da coroa do império", diz Charles Stanish, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. E a vitória militar foi apenas o primeiro passo da estratégia inca para forjar um império. Quando eclodiam movimentos de resistência nas províncias, os incas promoviam deslocamentos compulsórios de populações, deportando os grupos mais inquietos para as áreas centrais do império e substituindo-os por súditos leais. Os moradores de remotos vilarejos amuralhados foram transferidos para os povoados fundados à margem dos novos caminhos - os quais também facilitavam a movimentação das tropas. Ao longo dessas estradas, os governadores ordenaram a construção de celeiros e obrigaram as comunidades locais a mantê-los abastecidos de provisões. "Os incas eram os gênios administrativos das Américas", comenta o arqueólogo Stanish.

A civilização andina prosperou como nunca. Engenheiros transformaram caminhos dispersos em um sistema de estradas interligadas. Seus agricultores aprenderam a lavrar a terra em altitude, cultivando cerca de 70 plantas nativas e mantendo nos celeiros grãos suficientes para atender à demanda de três a sete anos. Funcionários controlavam estoques, gerenciando o conteúdo dos armazéns em todo o reino graças à versão andina de um código para computação - constituído de cordões coloridos, os quipos, nos quais eram feitos nós. E os pedreiros incas ergueram obras arquitetônicas magistrais e atemporais, como Machu Picchu.Na época em que Huayna Capac subiu ao trono, por volta de 1493, pouca coisa parecia inacessível à dinastia Inca. Para realçar o esplendor de sua nova capital no Equador, Huayna Capac obrigou mais de 4,5 mil súditos rebeldes a carregar imensos blocos de pedra desde Cusco - uma distância de 1,6 mil quilômetros por vertiginosos caminhos montanhosos. No centro do império, um exército de homens e mulheres se esfalfava para erguer um complexo de palácios para o soberano. Por ordem dele, desviou-se o curso do rio Urubamba. Colinas foram arrasadas, e pântanos, drenados e semeados com milho, algodão, amendoim e pimenta. No centro do complexo, os trabalhadores assentaram as pedras para o novo palácio de Huayna Capac, o Quispiguanca.

Com os raios de sol já inclinados num fim de tarde, passeio pelas ruínas de Quispiguanca com o arqueólogo Alan Covey. Situado na periferia da atual cidadezinha de Urubamba, Quispiguanca desfruta do mais quente e ensolarado microclima da região, proporcionando à família real um agradável alívio do frio de Cusco. As construções que servem de entrada à propriedade hoje dão para um perfumado campo de coentro, e as muralhas restantes circundam um conjunto de edifícios que antes se estendia por uma área equivalente a cerca de sete campos de futebol.

Rodeado de parques, campos e jardins, Quispiguanca era um local para se afastar do mundo, onde o rei-guerreiro podia se descontrair após as campanhas bélicas. Huayna Capac recebia os convidados em salões e divertia-se jogando com cortesãos, enquanto a rainha cuidava do jardim e criava pombos. O soberano desfrutava de safras abundantes e de chicha, uma cerveja de milho, em quantidade suficiente para entreter seus súditos por ocasião das festas anuais em Cusco. Quispiguanca não era o único desses domínios da realeza. Arqueólogos já localizaram as ruínas de uma dúzia desses complexos arquitetônicos.

Mesmo após a morte, os reis continuavam poderosos. "Os ancestrais eram muito importantes na vida inca", comenta Sonia Guillén, diretora do Museu Leymebamba, em Cusco. Ao morrer de uma misteriosa enfermidade no Equador, por volta de 1527, Huayna Capac foi mumificado e levado de volta a Cusco. Membros da família real visitavam o falecido para pedir aconselhamento em questões vitais e seguir as orientações proferidas pelo oráculo que se sentava ao lado da
múmia. Anos depois de morrer, Huayna Capac continuava sendo o senhor de Quispiguanca.

durante a estação das chuvas de 1533, época auspiciosa para a coroação, milhares de pessoas se aglomeraram na praça central de Cusco para comemorar a chegada de seu novo monarca adolescente. Dois anos antes, em meio a uma guerra civil, estrangeiros haviam desembarcado no norte do império. Vestindo armaduras de metal e empunhando armas letais, os espanhóis haviam avançado contra o vilarejo de Cajamarca, onde aprisionaram o rei Atahuallpa. Após oito meses de cativeiro, eles executaram o soberano e, em 1533, o líder dos conquistadores, Francisco Pizarro, escolheu um jovem príncipe, Manco Inca Yupanqui, para encabeçar um governo títere.

Ao longe, as vozes dos carregadores do jovem rei ecoaram pelas ruas, entoando louvores. Logo depois veio o silêncio e os celebrantes viram o adolescente real entrar na praça, acompanhado das múmias de seus antepassados, cada qual em uma esplêndida liteira. Secos e encarquilhados, esses soberanos e suas consortes eram um lembrete a todos de que Manco Inca pertencia a uma longa linhagem de reis. Nos meses seguintes, os espanhóis se apoderaram dos palácios de Cusco e das propriedades rurais dos soberanos, e fizeram das mulheres da realeza suas amantes e concubinas. Enfurecido, Manco Inca rebelou-se e, em 1536, tentou expulsá-los do reino. Quando seu exército foi derrotado, ele fugiu de Cusco e refugiou-se em uma cidade na selva, Vilcabamba, de onde passou a fustigar os invasores com ataques de guerrilha. Apenas em 1572 os espanhóis conseguiriam destruir o reduto do rei inca.

No decorrer dessas agitadas décadas, a enorme rede de caminhos, celeiros, templos e propriedades incas pouco a pouco foi se arruinando. Enquanto o Estado se desintegrava, os incas e seus descendentes tentaram preservar os símbolos da autoridade imperial. Os corpos preciosos dos reis sagrados foram recolhidos e escondidos nos arredores de Cusco, onde eram venerados em segredo - e em desafio aos padres espanhóis. Em 1559, o juiz corregedor de Cusco, Juan Polo
de Ondegardo, decidiu pôr fim a essa idolatria, promovendo uma busca oficial pelas múmias, durante a qual foram interrogadas centenas de pessoas. Conseguiu localizar e apreender os restos mortais de 11 reis e várias rainhas incas.Durante um tempo, as autoridades coloniais exibiram as múmias de Pachacutec, Huayna Capac e dois outros reis como curiosidades no Hospital de San Andrés, em Lima, local que na época apenas admitia pacientes de origem europeia. Mas, como o clima úmido do litoral provocava a decomposição das múmias, os espanhóis viram-se forçados a sepultar em segredo em Lima os principais soberanos incas - longe dos Andes e dos súditos que os amavam e veneravam.

Em 2001, Brian Bauer e dois colegas peruanos, o historiador Teodoro Hampe Martínez e o arqueólogo Antonio Coello Rodríguez, decidiram encontrar as múmias dos monarcas, com o objetivo de sanar uma injustiça histórica e devolver aos peruanos uma parte de seu legado cultural.

Durante meses, Bauer e colegas debruçaramse sobre velhas plantas arquitetônicas do Hospital de San Andrés, hoje uma escola para meninas no centro de Lima. No fim, acabaram por identificar vários locais em que Pachacutec e Huayna Capac poderiam ter sido enterrados. Usando um radar que penetra o solo, descobriram o que parecia ser uma cripta subterrânea com abóbada.

Mas, quando realizaram a escavação, a decepção foi geral: não havia nada na cripta. "É bem provável", diz Bauer, "que o conteúdo tenha sido removido quando o hospital foi reformado após um tremor de terra." Até hoje ninguém sabe onde foram parar os corpos dos maiores reis do Peru.

  National Geographic  Brasil

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