Mar Potável
Cena aquática cotidiana em Alter do Chão.
Na confluência dos rios Amazonas e Tapajós, o município de Alter do
Chão, a 35 quilômetros de Santarém, no Pará, guarda a praia de água doce
mais bonita do Brasil e o maior aquífero de água potável do mundo.
Descoberto em 1958 e mensurado em 2010, só agora os geólogos começam a
mapear a riqueza do subsolo amazônico.
Na cidade apelidada de “Caribe Amazônico”, turistas colocam os pés para
o alto nas mesas espalhadas pelas areias brancas da Ilha do Amor, que
surge na vazante, quando o volume de água do rio diminui, entre janeiro e
agosto. Barracas cobertas de sapê oferecem delícias da culinária
amazônica, como o tucunaré na manteiga e o suco de açaí. Barquinhos de
madeira passeiam pelo único afluente do Amazonas com águas esverdeadas e
cristalinas. As praias do Tapajós maravilham os olhos. Quem vê a
paisagem nem imagina que sob os pés corra o maior manancial de águas
subterrâneas do mundo, o Aquífero Alter do Chão.
Aquíferos são formações geológicas que armazenam ou liberam água
subterrânea, como uma esponja cheia que, ao ser movimentada ou
pressionada, solta o elemento. Com toda a chuva que cai na Amazônia, era
previsível que o subsolo guardasse mais água. Até 2010, considerava-se o
maior aquífero do mundo o Guarani, que se estende por baixo de 1,2
milhão de quilômetros quadrados do Brasil, Paraguai, Argentina e
Uruguai, com 45 mil quilômetros cúbicos de água. Cerca de 70% das águas
estão no Brasil e se espalham pelo subsolo de oito Estados. Já o Alter
do Chão ocupa três Estados – Amazonas, Pará e Amapá –, é menor em
extensão, mas possui uma reserva de água potável de 86 mil quilômetros
cúbicos, o suficiente para abastecer a população mundial por pelo menos
400 anos.
O tamanho do Alter do Chão era subestimado até pesquisadores da
Universidade Federal do Pará (UFPA) anunciarem, em 2010, que ele
continha o maior volume de água potável do mundo. Os geólogos Milton
Matta e Francisco de Abreu, o engenheiro André Montenegro Duarte, o
economista Mário Ramos Ribeiro e o geólogo Itabaraci Cavalcante, esse da
Universidade Federal do Ceará (UFC), foram os responsáveis pela análise
preliminar do sistema. “Desde a década de 1960, as pessoas estudam o
aquífero, mas, quando começamos a pesquisar a fundo, em 2007,
descobrimos uma reserva incrivelmente grande”, diz Milton Matta.
Em 2011, a Agência Nacional de Águas (Ana) iniciou estudos nas bacias
sedimentares da Província Hidrogeológica do Amazonas. Ao custo de R$ 4,4
milhões, a pesquisa será finalizada em 2014. Dados recentes apontam que
o Aquífero Alter do Chão pode fazer parte de um sistema ainda maior. “A
pesquisa feita pela UFPA não é equivocada, mas estamos descobrindo que o
Aquífero Alter do Chão pode integrar o que chamamos de Sistema Aquífero
Amazonas, que engloba também os aquíferos Içá e Solimões”, afirma
Fabrício Cardoso, hidrólogo da gerência de águas subterrâneas da Ana.
“Embora as informações ainda sejam insuficientes, tudo indica que o
Aquífero Amazonas é muito maior do que o Alter do Chão em termos de
volume de água e extensão territorial.”
A descoberta da UFPA foi divulgada para informar a sociedade e levantar
financiamento para os estudos, mas até agora a verba não veio. Enquanto
o Aquífero Guarani, descoberto na década de 1950, já recebeu
financiamento de US$ 26,7 milhões do Fundo para o Meio Ambiente Mundial e
de outras entidades, nos últimos cinco anos o Aquífero Alter do Chão
ficou relegado ao esforço dos pesquisadores. “Parte dos estudos foi
subsidiada com recursos de outros projetos que desenvolvemos sem ajuda
financeira de patrocinadores. Já o conhecimento prévio que aproveitamos
provém dos poços de perfuração para óleo e gás feitos pela Petrobras”,
explica Matta.
Abundância excessiva
Apesar de 70% da Terra ser coberta de água, apenas 2,5% constituem-se
de água doce, dos quais 99% correspondem a águas subterrâneas e só 1%,
ao volume de água doce de rios e lagos. O Brasil tem 18% da água doce do
planeta. Para Matta, paradoxalmente a Amazônia “acaba pagando um preço
alto por ter muita água”. Com 7% da população, a região detém 70% do
recurso. Já no Sudeste, 42% da população dispõe de apenas 6% da água.
“Os financiamentos vão para as áreas com menos água. Por termos
abundância de recursos hídricos, não somos prioridade de investimento em
estudos. Contudo, cuidar das águas da Amazônia é estratégico para a
população mundial e principalmente para o Brasil. Enquanto no Nordeste
estão sofrendo por falta d’água, estamos sentados no maior manancial do
planeta”, diz Matta.
Para Marco Antônio Oliveira, superintendente do Serviço Geológico do
Brasil, do Ministério de Minas e Energia, a questão é cultural. “A Lei
Nacional de Recursos Hídricos é voltada para o gerenciamento da
escassez, o que atrapalha a gestão da água na Amazônia. Ainda não
conseguimos avaliar o valor estratégico dessa água toda para o Brasil e o
planeta”, diz.
Uma primeira diferença é que, enquanto o Aquífero Guarani está sob a
rocha, o de Alter tem terreno arenoso, que funciona como um filtro e
garante a potabilidade da água, além de facilitar a penetração da chuva e
a perfuração de poços. Se há mais extração do que a capacidade do
sistema de repor água, a reserva diminui e torna-se necessário buscar o
recurso cada vez mais fundo. A espessura média do Aquífero Alter do Chão
é de 575 metros.
Amazonas e Pará
Sob Manaus, o aquífero responde pelo abastecimento de 30% da água da
cidade, enquanto 70% vêm do Rio Negro. A concessionária que capta água
do rio para abastecer a população não chega à periferia da cidade. Sem
opção, os moradores furam artesanalmente poços particulares e rasos, de
40 a 60 metros de profundidade. Outros, mais profundos, são feitos pela
própria concessionária. “Esses poços representam risco, pois bombeiam 24
horas por dia, não dando tempo de recuperação de água subterrânea”,
ressalta Oliveira.
A captação de água vem causando rebaixamento do nível do aquífero. “Um
poço que precisava de 100 metros para captar uma determinada vazão
precisa hoje alcançar 140 metros de profundidade para conseguir essa
mesma quantidade de água”, diz Daniel Nava, secretário de Mineração,
Geodiversidade e Recursos Hídricos do Estado do Amazonas.
No entorno de Manaus, a proliferação de poços está comprometendo a
qualidade da água, pois o volume de esgoto in natura nos igarapés da
região ainda é alto, o que acaba contaminando a água do aquífero.
Segundo Oliveira, nos poços mais rasos nos arredores de Manaus, a
poluição já é nítida. Apesar de estar no subsolo, a água dos aquíferos
pode ser contaminada caso em suas proximidades sejam construídos lixões,
fossas, cemitérios ou grandes lavouras.
No Pará, Alter do Chão, com apenas dois mil habitantes, vê a paisagem
mudar com a chegada da estação chuvosa. As faixas de areia diminuem e a
água escurece, até que, em maio, no auge da estação chuvosa, só se vê o
teto de sapê das barracas. É a hora de se desvendar outra Alter do Chão,
com cenários oníricos como a Floresta Encantada, uma mata de igapó pela
qual ziguezagueiase de canoa por entre as copas das árvores duplicadas
pelo espelho d’água. Ao entardecer, a dica é atravessar o Tapajós em
busca do melhor ângulo para apreciar o famoso pôr do sol local. Com
sorte, a experiência pode ser coroada pela visão dos botos nadando
sincronizadamernte.
Em setembro, a noite segue no ritmo da Festa do Sairé, que mistura
elementos religiosos e profanos e lota as pousadas da vila. A festa,
realizada desde o século 18, é marcada por procissões e manifestações
folclóricas ritmadas pelo carimbó. Durante os desfiles dos blocos, as
duas agremiações culturais, Boto Tucuxi e Boto Cor de Rosa, apresentam
um espetáculo de cores, ritmos e beleza ao público. Considerada pelo
jornal inglês The Guardian como a melhor praia do Brasil, Alter do Chão
possui uma infraestrutura turística que melhorou recentemente, e hoje a
vila conta com boas pousadas e hotéis, postos de saúde, restaurantes,
agências de turismo, poucas lojas e muitas barracas com artesanato.
Como proteger?
Milton Matta é um advogado da valoração econômica da água. “Ela é o bem
natural e mineral mais precioso para a sobrevivência da humanidade”,
diz. Os recursos hídricos são cruciais para manter o equilíbrio da
floresta e o clima do mundo, para abastecer a agricultura (que responde
por 70% do consumo de toda a água mundial) e a indústria (20%).
Até agora, não existe um modelo de uso para proteger o Aquífero Alter
do Chão. Para tanto, é preciso aprofundar os estudos e produzir
informações destinadas a alimentar o Método de Valoração Contingente,
aplicado nos Estados Unidos e na União Europeia. Recomendado pela
comunidade científica para precificar o valor de recursos naturais, tais
como aquíferos, o conceito consta da Declaração do Milênio, aprovada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2000.
Para implementar uma política para as águas da Amazônia, a valoração é
imprescindível. O engenheiro André Montenegro, da UFPA, ressalta que “o
que se paga pela água hoje é basicamente o custo de captação, tratamento
e distribuição, um valor ridículo e tecnicamente errado”. O certo,
segundo o economista Mário Ramos Ribeiro, seria “valorar o uso direto, o
uso indireto e o ‘valor de existência’, e somá-los. Este último, o
valor de existência, exige uma metodologia mais complexa, pois as águas
são bens públicos para os quais não há mercados e, consequentemente, não
há preços monetários”.
Os pesquisadores paraenses propõem a adoção de um valor de “não uso”.
Assim, o recurso ganhar valor e importância pelo fato de ser mantido na
natureza.
As águas da Amazônia mantêm o equilíbrio ecossistêmico da floresta
tropical úmida e controlam a geração de chuvas para toda a agricultura
do país, regulando o equilíbrio climático. “Dessa forma, é preciso
entender que águas circulando e a floresta em pé têm uma importância
significativa para a economia do país. Não é descabida a ideia de se
estabelecerem mecanismos de compensação financeira que, como as águas,
funcionem como meios de transferência também de renda entre as regiões
brasileiras”, defende Matta.
Em 1995, o então vice-presidente do Banco Mundial, Ismail Serageldin,
afirmou que “as guerras no próximo século acontecerão por causa da
água”. O próximo século já chegou e, segundo a ONU, 1,6 bilhão de
pessoas vivem em regiões com escassez de água. Até 2025, dois terços da
população mundial podem ser afetados pelas condições do recurso. Em
2012, 80% das doenças em países em desenvolvimento foram causadas por
água não potável e saneamento precário, incluindo instalações de
saneamento inadequadas.
Diante da privilegiada situação do Brasil e do rarefeito panorama
mundial da água, é urgente desenvolver mais pesquisas sobre o maior
manancial de água potável do mundo. Para isso, é necessário investir no
mapeamento dos aquíferos, fazer o levantamento dos recursos hídricos e
estabelecer uma política de utilização e exploração sustentável.