segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A arca da comida

É fato: para sustentar a crescente população mundial, será preciso duplicar a produção de alimentos. Mas nossas safras não vêm aumentando em ritmo suficiente, e mudanças no clima e pragas colocam em risco as poucas variedades das quais dependemos. A saída? Preservar espécies domésticas de pouco uso comercial.

Por Charles Siebert
Foto de Jim Richardson
A arca da comida O conservacionista Cary Fowler segura dois frascos com ervilhas. Ao fundo, a elegante construção abriga o Banco Global de Sementes de Svalbard, na Noruega, que ele fundou para evitar a extinção em massa de safras.
A 9,5 quilômetros da cidadezinha de Decorah, no estado americano de Iowa, fica a Heritage, uma fazenda com 360 hectares de campos ondulados e bosques que deixou de ser cultivada. A intenção é que as plantações revertam a uma condição silvestre, o que, a princípio, não parece ser muito lógico. Mas na realidade tudo nessa propriedade destoa das áreas circundantes, nas quais a soja e o milho são cultivados com esmero, exemplos perfeitos da agricultura moderna. Mas a fazenda Heritage tem como objetivo colecionar, e não cultivar. Ela é a sede de um dos maiores bancos não governamentais de sementes dos Estados Unidos.
Em 1926, durante uma expedição à Abissínia (atual Etiópia), o botânico teve uma percepção de tal modo abrangente que vislumbrou a possibilidade de identificar um punhado de locais em todo o planeta nos quais os antepassados silvestres de nossas safras mais comuns haviam sido domesticados. Mais tarde, compilou um mapa dos sete "centros originários das plantas cultivadas", que considerou como as áreas de surgimento da agricultura. "É possível contemplar ali", escreveu ele, "o papel desempenhado pelo homem na seleção das formas melhor adaptadas a cada local."

A história de Vavilov não teve final feliz. Em 1943, esse que foi uma das maiores autoridades mundiais nos possíveis remédios para a fome morreria de inanição em um campo de prisioneiros às margens do rio Volga - mais uma vítima de Stalin, que via a coleta de sementes como nada mais que um empreendimento científico burguês. A essa altura, o Exército de Hitler já havia cercado São Petersburgo (na época, Leningrado), que resistiu desesperadamente ao cerco, durante o qual morreriam mais de 700 mil pessoas.

As autoridades soviéticas haviam ordenado a evacuação do Hermitage, temendo que Hitler estivesse de olho nas obras de arte do museu. Mas nada fizeram para proteger 400 mil sementes, raízes e frutos armazenados naquele que era então o maior banco de sementes do mundo. Por conta própria, um grupo de cientistas do Instituto Vavilov separou uma amostra representativa das sementes e transferiu as caixas para o porão. Mais tarde, documentos históricos revelariam que, na verdade, Hitler ordenara que uma unidade de tropas especiais assumisse o controle do banco de sementes, talvez na expectativa de um dia controlar o suprimento mundial de alimentos.

Embora esfomeados, os pesquisadores se recusaram a comer o que viam como o futuro de seu país. No fim do cerco alemão à cidade, na primavera de 1944, nove dos guardiões das sementes do instituto haviam morrido. De inanição.

Desde então, as ideias de Vavilov foram reavaliadas. Hoje, os cientistas consideram as regiões por ele identificadas como sendo centros de diversidade, em vez de centros originários, pois não se comprovou que ali tivesse ocorrido a domesticação inicial. Todavia, uma concepção fundamental de Vavilov - de que tais regiões eram os repositórios da diversidade genética, da qual depende o futuro dos nossos alimentos - está se revelando mais premonitória que nunca.Existem 1,4 mil bancos de sementes ao redor do mundo. O mais ambicioso deles é o novo Banco Global de Sementes de Svalbard, instalado no interior de uma montanha de arenito na ilha norueguesa de Spitsbergen, 1 125 quilômetros ao sul do polo Norte. Criado por Cary Fowler, em conjunto com o Grupo de Consulta sobre Pesquisa Agrícola Internacional, a chamada "caixa-forte do fim dos tempos" é uma espécie de arquivo de segurança de todos os bancos similares existentes no resto do mundo. Cópias dessas coleções dispersas ficam guardadas em uma área resfriada e livre de tremores, 122 metros abaixo do nível do mar, garantindo que as sementes estejam sempre secas e seguras, mesmo no caso do derretimento das calotas polares.

A Fundação Global para a Diversidade de Safras, também criada por Fowler, anunciou há pouco tempo o equivalente a uma das expedições de coleta de sementes em âmbito mundial organizadas por Vavilov: um projeto de dez anos para vasculhar o planeta em busca dos últimos parentes silvestres de trigo, arroz, cevada, lentilha e grão-de-bico. A expectativa é que esse esforço frenético permita aos cientistas transferir as características essenciais das variedades agrestes - como a tolerância a secas e inundações - às variedades comerciais mais vulneráveis.

O caminho inverso na interação entre as técnicas de mapeamento genético e os primórdios da agricultura teve um capítulo interessante no Brasil em 1995. "Fomos procurados por representantes do povo indígena Krahô, do Tocantins", diz Patrícia Bustamante, líder da Rede de Recursos Genéticos Vegetais, formada por universidades, institutos de pesquisa e encabeçada pela Embrapa. "Eles não tinham mais as sementes primitivas e não obtiveram sucesso com as variedades comerciais do milho". Uma espécie do banco genético da rede (que tem 107 mil amostras de 600 espécies agrícolas importantes) foi doada e a produção rudimentar acontece até hoje.

A busca por espécies selvagens e a armazenagem de sementes em bancos, com o objetivo de nos salvar de catástrofes futuras, não são as únicas medidas necessárias. Igualmente merecedor de preservação é o conhecimento dos agricultores do mundo, que aperfeiçoaram as sementes e as raças que agora tanto cobiçamos.

Jemal Mohammed, de 40 anos, cultiva 2 hectares de encostas no vilarejo de Fontanina, em Welo, na Etiópia. Ali é o centro de uma das áreas de diversidade visitadas em 1926 por Nikolay Vavilov.ercorrer as terras de Mohammed é o equivalente a retornar a uma época muito antiga da agricultura. A choça circular e coberta de colmo, com suas paredes de argila seca e palha, é idêntica às moradias que durante séculos pontilharam a região rural da Etiópia. Ao lado da choça, uma parelha de bois desfruta da sombra de um jacarandá. Três ou quatro galinhas ciscam no terreiro sem vegetação. Nos campos, lavrados com um arado puxado por bois e semeados à mão, há plantios de tomate, cebola, alho, coentro, abóbora, sorgo, trigo, cevada, grão-de-bico e tefe, cereal usado no preparo de um pão típico, o injera.

Comparado às operações mecanizadas da agricultura moderna, o trabalho de Mohammed é um dinâmico e sutil malabarismo em meio a constantes ameaças, como seca, tempestades e doenças. Ao plantar legumes e cereais juntos, ele extrai o máximo de um terreno restrito. E, ao mesmo tempo, essa mescla é uma forma natural de fertilização: os legumes que crescem aos pés do sorgo adicionam nitrogênio ao solo.

Welo foi uma das regiões mais afetadas pela fome que, em 1984, matou centenas de milhares de etíopes. O drama continua vivo na lembrança de Mohammed. Ele me mostra uma coleção de cabaças cheias até a bordas: sementes de todas as plantas que cultiva que sua mulher esfrega com cinzas para protegê-las das brocas. "Se perdermos a safra por causa de uma seca ou inundação", diz ele, "posso replantar as minhas terras."

Esse é o fascinante paradoxo das sementes. A despeito de sua importância óbvia, elas são facilmente desconsideradas, sobretudo, por aqueles dentre nós que vivem no mundo bem alimentado, esquecidos da origem de nossos alimentos. Mohammed me conduz a um campo do outro lado da estrada, onde ele e o vizinho erguem uma laje de pedra que dá acesso a uma câmara subterrânea com 2 metros de comprimento e 2 de profundidade: um depósito de cereais para emergências. Dali a semanas, quando estiver concluída a colheita, eles vão revestir de palha a câmara, enchê-la de cereais e cobri-la com a laje. O frio da terra manterá o frescor dos grãos.

Pergunto o quanto tiveram de recorrer a esse depósito durante a carestia de 1984. Eles baixam a cabeça e murmuram uma resposta antes de ficar mudos, com os olhos marejados. O intérprete então faz um gesto com o dedo me avisando que era melhor eu não insistir no assunto.Para eles, é difícil até mesmo pensar naquela época, explica o tradutor. Eles haviam vendido o cereal armazenado, pois jamais imaginavam que poderia haver uma seca tão súbita. E a situação piorou de tal modo que foram obrigados a comer todas as reservas. Vários de seus parentes morreram de inanição. As condições eram tão inóspitas para o plantio que a barriga vazia fez com que contemplassem até mesmo o impensável: comer as sementes, ou seja, o próprio futuro.

O planalto na região centro-oriental da Etiópia foi, no passado, um dos pontos de maior diversidade botânica no planeta. Mas, na década de 1970, os agricultores dali estavam limitados a cultivar tefe e poucas variedades de trigo. Hoje, a zona se transformou: as variedades locais de hortaliças e de trigo voltaram a prosperar. Considerando a imagem corrente da Etiópia como um país afligido pela fome, é surpreendente, durante a viagem de carro de uma hora a nordeste de Adis-Abeba, ver os imensos campos cobertos do cerrado trigo de grão duro e sementes roxas, uma variedade endêmica da Etiópia. Usado em massas alimentícias, esse trigo é resistente à ferrugemdo-colmo. Em uma das plantações havia outra variedade nativa, a setakuri, que significa "orgulho feminino", pois resulta em um pão adocicado.

Essa reviravolta na agricultura etíope pode ser atribuída em parte aos esforços do renomado geneticista Melaku Worede, que se doutorou pela Universidade do Nebraska em 1972 e em seguida retornou à Etiópia com o objetivo de preservar - e reconstituir - a biodiversidade de seu país natal. Worede e sua equipe do Centro de Recursos Genéticos de Plantas, em Adis-Abeba, promoveram a coleta e o armazenamento de plantas e sementes nativas e desenvolvidas de modo natural. Em 1989, Worede lançou o programa Sementes da Sobrevivência, uma rede comunitária que reúne e distribui as sementes dos agricultores locais.

A expectativa de Worede é que os novos projetos que visem incrementar a produção de alimentos - como a Aliança para uma Revolução Verde na África, da Fundação Gates - não repitam erros do passado. "Os responsáveis pelo planejamento disso estão conscientes de que a primeira revolução verde fracassou no longo prazo. Algumas ideias são de fato inteligentes", diz Worede, "mas ainda se concentram demais em uma gama estreita de variedades. E o resto? Vamos acabar por perdê-las. É preciso agregar o conhecimento local, que é a ciência do agricultor."

Para Worede, é crucial resguardar a diversidade da região, não só por meio dos bancos de sementes mas também nas práticas cotidianas, e estar sempre em estreito contato com os agricultores. Embora a produtividade seja importante para os lavradores, ainda mais crucial é que possam se proteger contra a escassez de alimentos, reduzindo o risco por meio de cultivos variados ao longo das estações do ano e em locais distintos. Desse modo, se há quebra de uma safra por causa de doença ou se outra sucumbe à seca ou se uma encosta é devastada pelas chuvas, mesmo assim eles podem contar com alternativas.O desafio tem sido mostrar que é possível aumentar o rendimento sem sacrificar a diversidade. Para Worede, trata-se de provar a falsidade de uma escolha que se coloca entre ter o suficiente para comer hoje e preservar a biodiversidade alimentar no futuro. Esse foi o seu objetivo. Ele tomou as variedades escolhidas pelos agricultores por serem adaptáveis e pesquisou quais delas possibilitavam melhor rendimento.

O emprego de sementes locais de alta produtividade - associado a fertilizantes naturais e técnicas como o plantio mesclado - melhorou a produtividade em até 15% a mais que a das variedades importadas que requerem volume maior de insumos. Um esforço paralelo vem sendo realizado com as raças de animais nativos da região. Segundo o especialista em genética animal Keith Hammond, das Nações Unidas, em 80% das áreas rurais do planeta os recursos genéticos adaptados ao local são superiores aos das raças importadas.

Ainda assim, um acréscimo de 15% está bem distante da duplicação no suprimento de alimentos que, de acordo com os especialistas, será necessária nas próximas décadas. A preservação da diversidade dos alimentos não passa de uma das estratégias para vencer esse obstáculo, mas é crucial. À medida que o mundo se torna mais quente, e o ambiente, mais inóspito para as sementes e as raças que hoje fornecem nossos alimentos, a humanidade provavelmente vai precisar dos genes que permitem às plantas e aos animais sobreviver, por exemplo, ao calor africano ou às pragas recorrentes. Na verdade, Worede acha muito provável que os cientistas encontrem nas plantações etíopes as variedades resistentes à Ug99. "E, mesmo se essa praga contra o trigo assumir uma forma nova, ela não vai devastar tudo por aqui. Essa é a vantagem da diversificação."

Mohammed e seu vizinho ficam em silêncio diante de seu banco de sementes particular naquela tarde em Welo. Desde a fome de 1984, nunca mais pensaram em vender qualquer cereal antes da época da colheita. Pergunto a eles se a abundância evidente de seus campos fazia com que se sentissem mais seguros e otimistas. "Seria bom ter um pouco mais de dinheiro", começa Mohammed, "de modo que a gente pudesse mandar as crianças para a escola, com roupas decentes, mas..." Ele se cala, olha para o vizinho e então diz algo que descreve com perfeição a atitude que todos nós deveríamos adotar diante da questão do futuro dos nossos alimentos.

"Estamos confiantes", diz Mohammad. "Mas também muito atentos aos riscos."

National Geographic Brasil

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